![]() Entre algoritmos e estética: a adultização como sintoma e como mercadoA infância sempre foi território disputado. No passado, as crianças eram tratadas como adultos em miniatura; hoje, vivemos a contradição de transformá-las em “mini adultas” ao mesmo tempo em que prolongamos adolescências artificiais nos adultos. A diferença é que agora temos um aliado poderoso nessa distorção: o algoritmo.
O algoritmo não tem moral. Ele não distingue inocência de exploração. Ele aprende com nossos cliques, comentários e tempo de tela. Se um conteúdo gera engajamento, seja ele um tutorial de matemática ou um vídeo que sexualiza uma menina de doze anos, ele entrega mais daquilo. É um mercado de atenção em que a moeda não é só o nosso tempo, mas, muitas vezes, a integridade de quem não tem meios para se defender.
O alerta de Felca Foi nesse cenário que Felipe Bressanim Pereira, o Felca, lançou em agosto de 2025 o vídeo “Adultização”. Não foi humor. Não foi ironia. Foi denúncia pura, com nomes, casos e provas. Ele expôs influenciadores que transformavam a exposição de meninas em produto, de festas com álcool a coreografias sensuais, e mostrou como mães e responsáveis, às vezes, não só permitiam, mas lucravam com isso. Casos como o de Kamyla, empurrada para conteúdos cada vez mais sugestivos, e Caroliny Dreher, explorada comercialmente pela própria mãe, chocaram não só pela gravidade, mas pela naturalidade com que circulavam nas redes.
O impacto foi imediato: investigações do Ministério Público, perfis derrubados, uma enxurrada de comentários divididos entre indignação e relativização. Felca não inventou o problema, mas o trouxe para a sala de estar de milhões de brasileiros.
Pensadores e diagnósticos Meenakshi Gigi Durham, em The Lolita Effect, descreve como a mídia e a publicidade moldam meninas para corresponder a um imaginário sexualizado desde cedo. O resultado é uma infância encurtada e uma adolescência acelerada, onde a culpa, muitas vezes, recai sobre a vítima por “ter provocado”.
Philippe Ariès, em História Social da Criança e da Família, já mostrava que, na Idade Média, não havia separação clara entre o mundo adulto e o infantil. Neil Postman, em O Desaparecimento da Infância, acrescentou que a televisão e, depois, a internet, dissolvem barreiras e expõem crianças a linguagens e imagens antes restritas.
No Brasil, pesquisadores como Maria Lúcia de Barros Mott e Ana Lúcia Sabadell vêm apontando há anos que a sexualização precoce não é “importada” ela se alimenta de tradições publicitárias, de padrões estéticos internalizados e de um mercado pornográfico que transforma juventude em fetiche vendável.
Nós dentro do problema É confortável dizer que o mal está “na cabeça do outro”. Mas e quando padrões de beleza que infantilizam, como a depilação total das partes íntimas femininas, são normalizados e vendidos como requisito de atratividade? Estudos brasileiros mostram que a preferência masculina por genitálias sem pelos é majoritária, especialmente entre os mais jovens, e que essa estética é reforçada por pornografia mainstream e redes sociais.
Quando compartilhamos, mesmo sem intenção, um vídeo que sexualiza a infância, ou quando participamos de uma cultura que valoriza corpos “purificados” de qualquer traço adulto, estamos alimentando sinais que o algoritmo entende como “entregue mais disso”.
Deep web e invisibilidade aparente Enquanto parte desse mercado é visível, outra se esconde nas camadas profundas da rede. A deep web oferece anonimato e resiliência: fóruns e marketplaces ilegais que, mesmo sendo alvo de operações policiais, ressurgem rapidamente. A rastreabilidade existe, mas exige recursos técnicos, cooperação internacional e, acima de tudo, pressão social para que governos priorizem esse combate.
O que fazer — e por que é urgente Denunciar não é formalidade, é ato de proteção. As plataformas oferecem ferramentas para isso: é preciso usá-las, registrando links e datas, sem jamais compartilhar o conteúdo em si. No Brasil, o Disque 100, o aplicativo Proteja Brasil e as delegacias especializadas são canais diretos. O Conselho Tutelar deve ser acionado sempre que houver risco ou exploração de menores.
Mas a denúncia isolada não é suficiente se a cultura seguir intacta. É preciso debater, constranger padrões que infantilizam, recusar a monetização da infância como entretenimento e ensinar, sem tabu, que proteger a infância é mais do que vigiar, é preservar tempo, espaço, brincadeira e corpo.
Felca, com seu vídeo, mostrou que um criador de conteúdo pode romper a bolha e forçar uma conversa nacional. Mas essa conversa só será transformadora se não for esquecida no próximo trend.
Referências bibliográficas
Ariès, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 2011.
Durham, M. G. The Lolita Effect. New York: Overlook Press, 2008.
Postman, N. O Desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.
Mott, M. L. B.; Sabadell, A. L. Sexualidade, Direitos e Violências. São Paulo: Cortez, 2017.
Internet Watch Foundation. Annual Report 2024. IWF, 2025.
NCMEC. CyberTipline Reports 2024. National Center for Missing & Exploited Children, 2025.
Felca. Adultização [vídeo]. YouTube, 6 ago. 2025. Monet Carmo
Enviado por Monet Carmo em 10/08/2025
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