... Expressividade ...

"Decifra-me mas não me conclua, eu posso te surpreender! - Clarice Lispector

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Quando a cultura não acompanha a gestão.

Em muitas organizações, especialmente nas que operam com estruturas industriais ou de grande impacto logístico, há um fenômeno pouco debatido, mas profundamente determinante: a gestão visível que muda, enquanto a cultura invisível resiste. Trata-se da colisão entre novas diretrizes e velhos comportamentos. Entre a vontade de transformar e o medo de se expor. Entre o planejamento e o improviso.

 

O que se vê, muitas vezes, é a chegada de uma nova liderança com energia, perguntas estratégicas e metas ambiciosas. O discurso se renova. Os cargos se movimentam. A empresa parece ganhar fôlego. Mas, nos bastidores, uma camada rígida, silenciosa e muitas vezes negligenciada impede que a transformação se consolide: a cultura da omissão operacional.

 

A Cultura da Centralização Disfarçada

Algumas organizações crescem em torno de lideranças carismáticas que concentram poder sem, no entanto, estruturá-lo. São figuras que assumem múltiplas áreas, evitam expor fragilidades e transformam a aprovação orçamentária em um processo político, e não técnico.

 

Neste modelo, solicitações de melhoria são frequentemente vistas como ameaças ao "equilíbrio orçamentário" mesmo quando a produtividade e a segurança estão em risco. Pedidos de reforço de equipe são ignorados sob a justificativa de "não ter verba". Eventos são realizados sem planejamento, sem considerar a abrangência dos turnos ou a carga de trabalho gerada nos bastidores. O improviso vira método. E o medo de errar paralisa a decisão.

 

Os Sinais de Colapso (Quase) Invisíveis

Antes de o caos se tornar institucional, ele dá sinais. São eles:

  • Supervisores sobrecarregados, acumulando funções estratégicas e operacionais.

  • RH desestruturado, atuando de forma reativa e sem indicadores.

  • Turnos operacionais esquecidos em eventos e decisões coletivas.

  • Falta de planejamento de pessoal compatível com o crescimento da produção.

  • Medo velado de se aproximar da alta liderança, por receio de “soar incompetente”.

Esses elementos não aparecem em dashboards, mas corroem a base de qualquer operação. A gestão parece estável até não estar mais. E quando um acidente ocorre ou os resultados despencam, é mais fácil apontar culpados do que rever o sistema.

 

Estudo de Caso Real: Vale, Brumadinho

Um exemplo trágico e emblemático é o rompimento da barragem de Brumadinho (2019), que deixou 270 mortos. Uma das críticas centrais feitas pela CPI e por auditorias independentes foi sobre a cultura de silêncio e normalização do risco. Muitos colaboradores, técnicos e até engenheiros tinham receios de reportar problemas ou solicitar mudanças por medo de retaliação, descrédito ou perda de função. A cadeia de comando era rígida. A comunicação ascendente era fraca. O custo humano e reputacional disso foi devastador.

Apesar da diferença de escala e natureza, o princípio é o mesmo: quando o medo e a centralização tomam o lugar da escuta e da técnica, o risco se torna invisível até virar manchete.

 

Fluxograma de Maturidade Organizacional

Para entender em que estágio uma organização se encontra, pode-se usar o seguinte modelo de maturidade:

  1. Reativa: Ações sem planejamento; tudo é urgência. Supervisores acumulam tarefas operacionais, com baixa autonomia e falta de apoio institucional.

  2. Funcional: Início de estruturação; alguns processos definidos, mas com padronização frágil. A liderança ainda centraliza decisões.

  3. Estruturada: Papéis e responsabilidades mais claros. Supervisores têm alçada mínima. Indicadores começam a ser implantados. Diagnósticos são considerados.

  4. Integrada: A comunicação entre setores melhora. Turnos passam a ser ouvidos. Planejamento estratégico considera o todo, não apenas setores isolados.

  5. Transformadora: Cultura organizacional fortalecida. Liderança técnica empoderada. Aprendizado coletivo constante. A operação contribui com soluções.

Este fluxograma ajuda a visualizar onde estávamos, onde estamos e onde podemos chegar com decisões corajosas.

 

O Que Deveria Mudar?

Transformar a cultura não é uma ação de marketing ou uma campanha de endomarketing. É uma decisão que começa com a coragem da liderança de aceitar que não sabe tudo, que precisa ouvir e que errar faz parte do processo de melhoria.

 

Alguns passos práticos:

  • Profissionalização das áreas-meio, com nomeação de lideranças técnicas, não apenas políticas.

  • Implantação de comitês operacionais, com escuta de todos os turnos.

  • Estímulo à autonomia responsável, onde supervisores tenham alçada real para agir.

  • Construção de indicadores simples, mas que reflitam a dor real do chão de fábrica ou da mina.

  • Reconhecimento da força invisível dos bastidores, que sustenta a imagem institucional.

Conclusão

Toda empresa tem um momento decisivo. Um ponto de ruptura entre o “sempre foi assim” e o “precisa ser diferente”. Algumas abraçam esse momento como oportunidade. Outras ignoram, até que o custo se torne alto demais.

 

Se há uma verdade difícil, mas necessária, é essa: não se trata apenas de trocar o gestor. É preciso trocar a lógica que o sustenta.

 

Porque não adianta pintar a parede se a fundação segue rachada. E enquanto a liderança se preocupa em parecer forte, a operação segue gritando em silêncio.

 

Monet Carmo
Enviado por Monet Carmo em 18/06/2025
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