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Felicidade é um horizonte limpo: entre Hitchcock, Han, Woolf e Jung

Qual a definição de felicidade? l Sr. Hitchcock

 

Essa fala do Hitchcock me deixou pensativa e estimulou meu pensamento critico de um jeito que eu não esperava. Não pela genialidade do que ele disse, mas pela simplicidade bruta quase triste, daquilo que, pra ele, era felicidade: um horizonte claro, sem ninguém gritando por dentro, sem ferida fresca pulsando no silêncio. Na hora, pensei que talvez todos nós estivéssemos esperando demais da felicidade… e oferecendo de menos a ela. Talvez ela só exista mesmo quando a gente não está tentando mostrá-la pra ninguém.

 

“A clear horizon. Nothing to worry about on your plate.”

 

Assim começa Alfred Hitchcock, quando perguntado sobre o que é felicidade. E não é preciso mais do que essa imagem de um horizonte sem nuvens para que a gente entenda que o mestre do suspense falava de algo bem distante dos finais felizes dos filmes americanos. Hitchcock falava de silêncio interior. De paz.

 

A definição que ele dá de felicidade não é triunfalista. Não passa pela realização profissional, pela conquista amorosa ou por grandes feitos. Pelo contrário. É quase uma antítese da vida moderna. Para ele, felicidade é quando não há conflitos, quando as relações humanas estão em harmonia, quando os afetos não ferem… e, acima de tudo, quando a mente está livre para criar.

 

E isso nos leva a Byung-Chul Han, que escreve sobre a “sociedade do desempenho”, onde todos vivem sobrecarregados de estímulos, hiperconectados, e mesmo assim, ou talvez por isso, infelizes. Han diria que esse horizonte limpo de Hitchcock se tornou inalcançável. O sujeito contemporâneo é viciado na produção incessante, mas não cria e produz sem alma, vive sem pausa. A felicidade virou tarefa. Um KPI emocional. E por isso mesmo se tornou mais distante do que nunca.

 

Virginia Woolf, com sua escrita flutuante e profundamente sensível, entenderia bem o desconforto de Hitchcock com os ruídos emocionais. Ela também era sensível às palavras cortantes, aos gestos rudes, à ausência de silêncio no mundo.

 

Em The Waves, Woolf escreve:

“A felicidade é absorver a luz, como o mar, sem questionar a origem.”

 

Ela, assim como Hitchcock, parecia buscar essa serenidade quase inatingível onde a mente pode vagar sem ser puxada para baixo pelas tensões e ruídos das relações humanas.

 

E há algo de profundamente junguiano nessa visão. Para Carl Gustav Jung, felicidade não é ausência de dor, mas a integração dos opostos dentro de nós. A criação só é possível quando o ego e o inconsciente se comunicam. Quando o sujeito encontra um eixo "o Self " que permite criar não a partir da compensação do que falta, mas da aceitação do que é. 

 

Hitchcock, nesse ponto, expressa uma forma de individuação: a liberdade interior que nasce quando se remove o peso das mágoas, do ódio, dos ruídos que não nos pertencem… e se abre espaço para o que realmente vem de dentro.

 

A arte de se proteger para poder criar

É curioso ver esse homem tido como mestre do controle e do suspense, dizer que não suporta o conflito. Que uma palavra maldita o machuca por dias. Que odeia brigas, tensões, ressentimentos. Não é sobre fraqueza. É sobre não desperdiçar energia com aquilo que não constrói.

 

Hitchcock sabia que criar é um ato delicado. Exige espaço interno. Exige paz. Exige que o mundo lá fora, com seus conflitos e julgamentos, não invada o terreno fértil da imaginação. E isso, talvez, seja a lição mais profunda de sua fala:

felicidade é o estado emocional mínimo necessário para que a criação aconteça.

É quando a alma pode respirar sem ter que se defender.

 

Conclusão: O horizonte como metáfora da alma

Num tempo em que se confunde felicidade com euforia, performance ou reconhecimento, Hitchcock nos oferece uma visão quase esquecida: felicidade é silêncio. É quando não há vozes te acusando. Nem dentro, nem fora.

 

É o momento em que, como escreveu Woolf, “podemos ser apenas uma corrente, fluindo suavemente para o mar.”

Ou como Jung talvez interpretasse: o momento em que nos tornamos inteiros e livres para criar algo que realmente nos represente.

 

E aí?

O que te rouba o horizonte?

Monet Carmo
Enviado por Monet Carmo em 07/06/2025
Alterado em 07/06/2025
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