![]() “A coruja de Minerva só levanta voo ao entardecer”(Filosofia, autoconhecimento e o Tempo que Cura Tarde, mas Cura.)
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, no prefácio de Princípios da Filosofia do Direito (1820), cunhou a célebre imagem da coruja de Minerva — símbolo da sabedoria — para dizer que a filosofia só entende a realidade no seu entardecer, ou seja, quando ela já se consolidou, já se passou. É um saber que chega depois da hora, mas ainda assim é essencial. Porque não é o saber da previsão, é o saber da compreensão.
E essa compreensão tardia não é fraqueza — é profundidade. Enquanto o mundo corre apressado, a filosofia pausa. Observa. Elabora. Interpreta. Ela não age no calor do momento, mas na brasa que fica quando o fogo já apagou.
Na psicanálise — filha bastarda da filosofia, da medicina e da literatura — esse saber que chega depois também faz sentido. Freud chamou de Nachträglichkeit o fenômeno em que algo aparentemente insignificante só se torna traumático mais tarde, quando ganha novo significado. Ou, melhor dizendo, quando encontra uma linguagem simbólica que o reinscreve na vida psíquica.
Quantas vezes a gente vive algo e só entende meses — ou anos — depois? Uma palavra dita pela mãe na infância que só vai doer na
terapia adulta. Um toque que parecia carinho, mas depois se revela invasão. Uma ausência que, lá na frente, vai fazer o corpo adoecer sem explicação direta.
Jean Laplanche foi preciso: “não é o fato em si que traumatiza, mas a impossibilidade de traduzi-lo no momento em que aconteceu”. O trauma, portanto, não é o que foi vivido — é o que não pôde ser simbolizado.
O tempo do inconsciente não é o do relógio. É o tempo do sonho, da memória, da arte. Ele não segue linha reta. Ele dobra, retorna, escapa, se mascara. Como os quadros de Dalí, em que o tempo escorre em relógios derretidos.
É por isso que na análise não se trata apenas de lembrar, mas de reviver. De recontar o vivido com outras palavras, com outros afetos. A análise não é museu de memórias — é oficina de sentidos. Ali, no espaço entre o analista e o analisante, o passado encontra o agora. E esse encontro não é para repetir o trauma, mas para ressignificá-lo.
Wilfred Bion dizia que o analista precisa “sonhar com o paciente aquilo que ele ainda não consegue pensar”. É bonito isso. Mas é também difícil. Porque exige um analista disponível para o não saber. Para a dor que ainda não tem nome. Para a angústia muda.
André Green fala do negativo. Do que falta. Do que nunca aconteceu. Do silêncio que ficou no lugar de uma fala, de um abraço, de uma validação. Ele lembra que o que não houve também dói. E que essa dor também precisa de escuta.
Lacan, com seu estilo labiríntico, dizia que o sujeito do inconsciente aparece justamente onde a linguagem falha. Onde a palavra não dá conta. E é ali, no vão entre uma palavra e outra, que a análise acontece.
Piera Aulagnier complementa dizendo que o eu só se constitui quando alguém sustenta uma fala que ainda nem foi dita. Isso mexe fundo... Porque é dizer que só conseguimos existir subjetivamente quando há um outro capaz de escutar o que ainda nem conseguimos nomear.
Hoje, o Brasil vive uma crise de saúde mental que é, ao mesmo tempo, sintoma e grito. Os números de ansiedade, depressão, automutilação e suicídio não param de crescer. E o mercado responde com fórmulas rápidas, cursos de inteligência emocional, promessas de alta performance e frases motivacionais de LinkedIn. Mas há algo aí que não se cura com método ágil nem com agenda organizada.
Em um mundo de respostas prontas, a psicanálise continua sendo o lugar da pergunta. Da escuta. Do tempo que respeita a dor. Do silêncio que sustenta a palavra que ainda vai nascer.
Não se trata de curar. Se trata de acolher. De dar forma ao que não teve lugar. De dar nome ao que foi vivido de forma bruta. De ajudar o sujeito a se reinscrever na própria história. E, quem sabe, deixar de repetir para poder, enfim, transformar.
Quando gerenciava um hospital publico, no suldeste do Pará, conheci uma paciente que falava sobre o pai. Um homem aparentemente presente, trabalhador, carinhoso até. Mas ela chorava cada vez que falava dele. Durante anos, ela achou que sentia saudade. Até que um dia, depois de uma sessão de quimioterapia em uma conversa de corredor em um reencontro mensal, ela disse: “ meu pai, ele nunca me ouviu de verdade”. E então tudo fez sentido. O choro, o vazio, a busca incessante por validação. O que doía não era a ausência física, mas a ausência simbólica. E só ali, anos depois, aquilo ganhou nome. E lugar.
É isso que o autoconhecimento faz. Ela não antecipa. Ela não acelera. Ela cuida do que ficou pra trás. Ela abraça o que foi negado. E, quando dá certo, ela não muda a vida da pessoa de forma espetacular. Mas ela transforma de um jeito discreto, profundo... e duradouro.
E você ai?
Já viveste algo que só começou a fazer sentido muito tempo depois?
Ou melhor: consegues sustentar o silêncio... até que uma fala nasça? Monet Carmo
Enviado por Monet Carmo em 04/06/2025
Alterado em 04/06/2025 Copyright © 2025. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. Comentários
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