![]() Nevou dentro de nós...Não sei se vc já sentiu isso: um silêncio espesso caindo sobre tudo. Não é o silêncio de paz. É aquele silêncio branco, gelado, que não traz alívio, mas paralisia. Como uma neve invisível que não derrete — se acumula na alma.
O Eternauta, na versão da Netflix, não é só ficção científica ou adaptação de HQ argentina. É um espelho turvo do mundo onde já estamos. Um mundo onde a catástrofe não vem só de fora, mas brota do lado de dentro, silenciosa como trauma mal digerido, como dor não nomeada que se transmite entre corpos e gerações.
Freud já dizia que o inferno real é o que criamos dentro da mente. E a série leva isso a sério: a nevasca mortal não é só um fenômeno climático — é a metáfora perfeita do congelamento psíquico. Quando a realidade nos fere a ponto de não termos mais palavras. Quando o branco da dor toma conta do pensamento e tudo o que se sente é ausência.
Assisti à série com o olhar de quem gerencia caos o tempo todo — caos predial, logístico, humano. De quem precisa organizar o invisível: a dor do trabalhador, o medo da equipe, a falta de estrutura, os fantasmas que habitam o subsolo das relações institucionais. Vi naqueles personagens o reflexo de muitos que acompanho diariamente. Gente que se move em meio a uma nevasca interna, mas ainda assim aparece, assina ponto, entrega tarefa, sustenta o mundo.
A filosofia nos dá ferramentas para interpretar o invisível. E O Eternauta nos obriga a isso: a enfrentar o invisível que é insuportável demais para ser dito. André Green chamaria isso de “trabalho do negativo”. O trauma não é só o que se sente — é o que nos impede de sentir qualquer outra coisa.
Mas se há algo que aprendi — na prática e na dor — é que o simbólico salva. Ainda que precariamente. Ainda que falhe. Ainda que a palavra vacile. O laço, o gesto, o cuidado... isso ainda pode atravessar o branco.
Kaës nos lembra que os traumas coletivos se propagam como vírus emocionais. Mas Lacan, mesmo com seu pessimismo estrutural, nos oferece uma saída: a fala, mesmo trêmula, ainda pode reinventar o mundo.
E por isso, mesmo depois de assistir ao apocalipse na tela, fechei os olhos e pensei: talvez a esperança não esteja em evitar a nevasca, mas em criar calor entre nós. Em reconhecer o outro não como ameaça, mas como espelho. Em aquecer o invisível com escuta, com gesto, com presença.
Porque no fim, a pergunta da série — “de onde vêm os monstros que nos caçam?” — talvez tenha uma resposta incômoda: eles vêm de dentro. Mas também de dentro pode vir a resistência.
E nela, eu insisto. Como quem acende uma pequena fogueira no meio da neve — só pra garantir que ainda há vida. Monet Carmo
Enviado por Monet Carmo em 01/06/2025
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