... Expressividade ...

"Decifra-me mas não me conclua, eu posso te surpreender! - Clarice Lispector

Textos

As verdades que nunca foram ditas

 

Poucas coisas são tão covardes quanto uma mentira bem contada — ou pior, um boato que ninguém se preocupa em verificar.

 

A gente costuma acreditar que a verdade sempre aparece. É bonito de dizer, reconfortante até. Mas a realidade — nua, suja, indelicada — é que o mundo se move mais pelas versões do que pelos fatos.

E uma versão repetida vezes suficientes vira crença.

Pior: vira identidade alheia sendo moldada sem consentimento.

 

Não é preciso muito. Um comentário maldoso, um olhar enviesado, uma frase jogada numa roda ou num grupo de WhatsApp — pronto. A reputação de alguém começa a ruir. E quem assiste, em geral, não questiona. Porque dá trabalho pensar, e muito mais ainda se responsabilizar pelo que se replica.

 

Nietzsche dizia que o homem prefere acreditar em qualquer coisa do que aceitar o incômodo de não saber. E é exatamente aí que os boatos ganham força: no desejo preguiçoso de preencher lacunas com ruído.

 

O mais irônico é que os que dominam a arte da manipulação passam ilesos.

São educados, estrategicamente simpáticos, dominam o vocabulário da performance moral. Esses, ninguém toca.

Enquanto isso, os autênticos — que talvez não saibam se explicar tão bem, que são mais corpo do que cálculo — acabam sendo os primeiros a cair na linha de tiro da fofoca.

 

E há algo profundamente cruel nesse teatro social: não basta ser correto, é preciso parecer ser.

E a aparência, como bem alertava Foucault, é uma armadilha onde o poder se esconde.

 

Mas o que mais me preocupa é a indiferença de quem escuta e simplesmente aceita.

Como se a dúvida sobre o outro fosse natural, inevitável, até divertida.

 

A verdade é que somos cúmplices — por omissão, por distração ou por prazer disfarçado.

E o dano, esse sim, é real.

Porque uma vez que a confiança é dilacerada, não adianta voltar atrás. A mágoa não desaprende o caminho que percorreu.

 

Talvez o exercício mais urgente de hoje seja esse: duvidar do que ouvimos com a mesma força com que nos apressamos em julgar.

E entender que quando um nome é arrastado na lama, nem sempre há como limpá-lo por completo depois.

 

A reputação pode ser uma ficção — mas as consequências são sempre carne.

 

Eu, que não acredita mais no benefício da dúvida quando ela já chega contaminada.

Monet Carmo
Enviado por Monet Carmo em 10/05/2025
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