... Expressividade ...

"Decifra-me mas não me conclua, eu posso te surpreender! - Clarice Lispector

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“Ser livre é fazer o que não se quer”:

O desafio invisível das mudanças culturais nas empresas

 

Quando Immanuel Kant escreveu que “ser livre é fazer o que não se quer”, ele falava de algo mais profundo do que apenas contrariar desejos. Ele falava sobre agir com consciência e responsabilidade, mesmo quando isso exige esforço, desconforto e superação.

 

Dentro das empresas, principalmente em momentos de transição cultural, essa ideia ressurge de maneira viva e dolorosa. Mudanças de cultura corporativa não são sobre discursos motivacionais ou campanhas de branding. Elas são sobre abrir mão de velhos hábitos, de verdades já confortáveis, e abraçar o novo... mesmo que o novo ainda pareça estranho ou ameaçador.

 

O choque inevitável: Velhos tempos, novos rumos

 

Em ambientes que tentam transformar sua cultura, o que vemos é um embate natural entre dois mundos:

 

De um lado, colaboradores que construíram a história da organização, carregando práticas e mentalidades que já deram certo.

 

De outro, novas lideranças e talentos que chegam com propostas diferentes, linguagens novas, valores mais ágeis, digitais, colaborativos.

 

Esse choque não acontece porque alguém está errado. Ele acontece porque culturas, como pessoas, se moldam em torno do que já conhecem — e desapegar do conhecido é um dos atos mais difíceis que existem.

 

O risco de não mudar: aprendendo com quem já viveu

 

Se olhar para fora, o mercado oferece lições valiosas — muitas delas pagas com a própria sobrevivência:

 

Kodak: O preço da negação

 

A Kodak, que durante décadas foi sinônimo de fotografia, inventou a primeira câmera digital em 1975. Mas optou por escondê-la, temendo canibalizar seu próprio mercado de filmes.

 

A velha cultura, focada em proteger o que era seguro, sufocou a inovação.

 

O desfecho: uma falência amarga, em 2012.

 

Lição: Não adianta ter tecnologia ou novos produtos. Se a cultura não se move junto, a inovação morre antes de nascer.

 

Netflix: O salto sem rede

 

No final dos anos 2000, a Netflix decidiu abandonar o aluguel de DVDs e apostar no streaming. Na época, até dentro da empresa, muitos duvidavam da decisão.

Reed Hastings foi firme: era melhor mudar antes que o mercado mudasse primeiro. A empresa perdeu clientes a curto prazo, enfrentou críticas... mas garantiu seu futuro.

 

Lição: Liderar a mudança dói no começo. Mas adiar pode custar a própria relevância.

 

Microsoft: Da arrogância ao aprendizado

 

Antes da chegada de Satya Nadella, a Microsoft era conhecida internamente como uma empresa onde todos precisavam provar que estavam certos — a "cultura do sabichão".

 

Nadella mudou o eixo: criou uma cultura de aprendizado, incentivando vulnerabilidade, escuta e colaboração.

 

Esse realinhamento cultural foi mais decisivo do que qualquer novo produto. E devolveu à Microsoft seu espaço como gigante da tecnologia.

 

Lição: Empresas não mudam por decreto. Mudam quando a mentalidade diária das pessoas muda.

 

E nas nossas empresas, o que fazer?

 

Mudar a cultura não é sobre apagar o passado. É sobre respeitar o que foi feito... enquanto se constrói algo novo, mais alinhado aos desafios que estão por vir.

 

Alguns movimentos são cruciais:

 

Reconhecer abertamente o legado, mas deixar claro que é hora de evoluir.

 

Traduzir os novos valores em atitudes concretas no dia a dia, não em discursos.

 

Formar líderes que sejam exemplos vivos da nova cultura.

 

Aceitar que parte da resistência é natural — e que parte dela precisa ser administrada com firmeza e clareza.

 

Mudança verdadeira não é pirotecnia. É construção silenciosa, dia após dia.

 

A liberdade real

 

No fim, talvez seja isso que Kant nos ensine melhor:

 

Liberdade não é fazer o que dá prazer. É ter a maturidade de fazer o que é necessário, mesmo que isso custe esforço, medo ou desconforto.

 

Nas empresas, liberdade é ter a coragem de mudar antes que o mercado mude por nós.

 

É escolher evoluir... enquanto ainda temos escolha.

 

Referências (Formato ABNT)

 

CORTELLA, Mário Sérgio.

Qual é a tua obra? Inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

 

EASTMAN KODAK COMPANY.

FRIEND, Theodore. The fall of Kodak: a tale of disruptive technology. The Atlantic, 18 jan. 2012. Disponível em: https://www.theatlantic.com/business/archive/2012/01/the-fall-of-kodak-a-tale-of-disruptive-technology/251087/. Acesso em: 26 abr. 2025.

 

HASTINGS, Reed; MEYER, Erin.

A regra é não ter regras: a Netflix e a cultura da reinvenção. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

 

KANT, Immanuel.

Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.

 

NADELLA, Satya; SHAW, Greg; NICHOLS, Jill Tracie.

Hit refresh: a busca para redescobrir a alma da Microsoft e imaginar um futuro melhor para todos. Tradução de Alice Klesck. São Paulo: Planeta Estratégia, 2018.

 

SCHEIN, Edgar H.

Organizational culture and leadership. 5. ed. Hoboken: Wiley, 2017.

Monet Carmo
Enviado por Monet Carmo em 26/04/2025
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