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A Ilusão da Porta Aberta:

Liderança, Poder e o Mito da Acessibilidade

 

A frase “minha porta está sempre aberta” tornou-se um mantra corporativo, repetido por diretores e gestores como um símbolo de proximidade e transparência. No entanto, esta ideia carrega uma contradição essencial: a porta aberta não significa, necessariamente, uma escuta real, assim como a presença de um líder não garante uma liderança eficaz. Na literatura brasileira, encontramos ecos dessa reflexão na obra de Machado de Assis , Graciliano Ramos e João Ubaldo Ribeiro , que exploraram, em diferentes contextos, os jogos de poder, a falsa sensação de controle e a distância entre discurso e prática.

 

O Poder Como Ilusão: Machado de Assis e o Jogo das Aparências

Machado de Assis, em sua crítica mordaz à sociedade e ao poder, nos mostra personagens que exercem influência não por seu conteúdo, mas por sua habilidade de manipular percepções. Em "Dom Casmurro" , Bentinho acredita que detém o controle de sua história e de sua casa, mas vive dominado pela dúvida e pelo medo. Sua “porta aberta” para a verdade é, na realidade, um labirinto de autoengano e suposições.

 

No universo corporativo, diretores que proclamam acessibilidade irrestrita frequentemente se colocam na posição de Bentinho: acredito que estão no comando, mas, na prática, são influenciados pelo que eles chegam aos ouvidos. Fazem gestão por percepções fragmentadas, e não por análises estruturadas, exatamente como o protagonista machadiano, que construiu uma verdade baseada em barcos e desconfianças.

Assim como Bentinho não controla sua própria narrativa, os diretores que ouvem mais do que analisam perdem a autonomia sobre suas decisões, tornando-se reféns das vozes mais insistentes ao seu redor.

 

Autoridade e Centralização: O Poder Rígido de Graciliano Ramos

Em "São Bernardo" , de Graciliano Ramos, Paulo Honório representa um modelo de liderança centralizadora, que confunde autoridades com rigidez e acredita que seu poder é absoluto. Sua fazenda, sua empresa e até seu casamento são governados por uma lógica de imposição, onde a escuta é elevada pela ameaça.

 

O paralelo com certos líderes corporativos é evidente. O discurso de “se não gostar das regras, pode sair” ressoa com a mentalidade de Paulo Honório: uma gestão baseada no medo, onde a disciplina não nasce do entendimento, mas da imposição. O resultado? Uma organização sem engajamento, onde os subordinados não se sentem parte de um projeto, mas apenas engrenagens aplicadas de um sistema autoritário.

 

Graciliano nos ensina que essa abordagem é insustentável. Assim como Paulo Honório perde tudo ao isolar-se em sua própria dureza, líderes que não compreendem a importância do diálogo estratégico veem suas equipes se tornarem indiferentes, mecânicas e sem identificação com a empresa.

 

A Ilusão da Democracia e o Engano da Porta Aberta: João Ubaldo Ribeiro

Em "Sargento Getúlio" , João Ubaldo Ribeiro expõe o paradoxo do poder informal. O protagonista, um homem violento e fiel a um sistema hierárquico distorcido, acredita estar cumprindo ordens em nome de um ideal maior, mas, no fundo, é apenas um peão em um jogo muito maior do que ele.

 

Muitos diretores que insistem na ideia da “porta sempre aberta” também são peças dentro de um sistema que os ultrapassa. Eles mantêm a ilusão de controle, mas suas decisões são moldadas por pressão invisíveis: a política interna da empresa, a economia global, as estratégias da matriz. Assim como Getúlio pensa que está no comando, mas apenas executa ordens podem superiores, diretores que se dizem acessíveis estarão, na realidade, apenas presentes como filtros para as verdadeiras forças que regem a organização.

 

O erro não está na porta aberta em si, mas na crença de que essa acessibilidade cria um ambiente democrático. Sem processos claros, sem um sistema estruturado de liderança, a porta aberta se torna apenas uma metáfora vazia – um símbolo de poder que, na prática, pouco transforma.

 

Conclusão: O Caminho para uma Liderança Autêntica

A literatura brasileira nos ensina que o poder e a liderança são complexos e, muitas vezes, ilusórios. Machado de Assis nos alerta sobre os perigos da gestão baseada em percepções subjetivas; Graciliano Ramos nos mostra o colapso da liderança autoritária; e João Ubaldo Ribeiro expõe o paradoxo de uma acessibilidade que não transforma.

 

O verdadeiro líder não é aquele que mantém sua porta aberta para reclamações e pedidos individuais, mas sim aquele que constrói um sistema onde as decisões são tomadas com clareza, responsabilidade e estratégia .

Mais do que ter uma porta aberta, é preciso ter um olhar amplo e uma escuta entregue. E isso, a boa literatura sempre nos ensina.

Monet Carmo
Enviado por Monet Carmo em 15/02/2025
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