... Expressividade ...

"Decifra-me mas não me conclua, eu posso te surpreender! - Clarice Lispector

Textos


Parece que os acordes não reproduzem sentimento entre a ferrugem da caixa de som, presente da puta. Melodias vazias surram o breu da orgia solitária em uma banheira preenchida por cigarros e uma garrafa de vinho tinto português. Não que eu seja um apreciador de bebidas adocicadas, por hoje decidi ser um pouco mais solidário do que tenho sido nos últimos anos de uma conduta rigorosa de narcisismo. A ocasião singela e despretensiosa nesta noite de lua cheia representa nossas traições com mais luz e clareza... Ela amava cada traço deste brilho subliminar exposto pelo luar de janeiro. Posso não me recordar claramente cada ato que lhe dava prazer, mas não se tratava do efeito do álcool em si, ela era mesmo viciada em uvas e um pouco de sexo.

 

"Quanto mais roxa, melhor..."

 

O maldito rastro doce daquela voz é prioritária entre o barulho dos veículos cortando o vento pela madrugada. Fecho os olhos com força enquanto trago o cigarro na esperança de que a brisa do fumo barato me permita excitar com o rastro de seus gemidos pela última vez. O esforço é em vão, não escorre uma lágrima sequer dos meus olhos.

 

É como se os finos acordes da guitarra de Kurt não tocassem na caixa enferrujada de som, pequeno falante de 10 rms. Embriagado, eu procurava algo além dos gritos e dos solos bordados em um mero CD empoeirado dos anos 90, o tempo passou e o efeito narcotizante também se foi junto a moda acústica dos abandonados, as músicas não me levavam mais a lugar algum. Nenhum passado, nenhuma pessoa, nem mesmo para o corpo dela...

 

É como se não houvesse lembranças intensas para causar dor, todas foram assassinadas pela necessidade de se levantar perante o desejo em trazer o passado de volta ao presente, entretanto, a cura trouxe consigo uma nova doença da qual requer outro suicídio, retomar a estaca zero, achar alguém para destruir minha sanidade e talvez eu consiga voltar a sofrer por alguma maldita razão um dia.

 

O vazio nunca esteve tão cheio.

A imagem atordoada enlouquece

perante o vidro do espelho.

A vida inteira busquei drogas

para entorpecer as fraquezas,

hoje anseio em ter de volta o sofrimento

que tanto lutei para superar.

@Narcotico
Enviado por Monet Carmo em 02/08/2023
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.

Tela de Claude Monet
Site do Escritor criado por Recanto das Letras